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Nacional / Internacional

Monumentos e documentos históricos

21.10.2014
18:04
FONTE: Armando Alexandre dos Santos

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Na linguagem popular corrente, utiliza-se a palavra monumento para designar estátuas, lápides, edificações de natureza diversa destinadas a perpetuar a memória de alguém ou de alguma coisa. A noção de monumento, pois, está quase indissociavelmente ligada à ideia de um objeto material intencionalmente feito ou preservado “ad perpetuam rei memoriam” - para a perpétua memória da coisa, como se dizia em latim. Ainda na linguagem corrente do português falado em nossos dias, pode-se usar, por extensão, a palavra monumento para designar alguma obra que, pela sua grandiosidade, mereça ter a memória perpetuada. Assim, pode-se dizer que “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, constituem um verdadeiro monumento da Literatura brasileira.

Etimologicamente, porém, se recuarmos até a forma latina monumentum, o sentido é bem mais amplo. Monumento significa “tudo o que lembra alguém ou alguma coisa, o que perpetua uma recordação, qualquer monumento comemorativo”, mas significa também “monumentos escritos, marca, sinal por onde se pode fazer um reconhecimento, uma identificação” (Machado, José Pedro. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Lisboa: Editorial Confluência/Livros Horizonte, 1967, t. II, p. 604, verbete Monumento).

Na historiografia moderna, geralmente se associam, mas se distinguem os conceitos de monumento e de documento. Jacques Le Goff propôs, em História e Memória (Campinas: Editora Unicamp, 5ª. ed, 2003), essa distinção terminológica e conceitual que, embora não constitua unanimidade e possa, até mesmo, ser objetável, tornou-se corrente entre os historiadores. Para Le Goff, monumento é tudo quanto resta do passado; e documento é o monumento que o historiador seleciona para seu trabalho. Todo documento é, pois, monumento, mas nem todo monumento é documento. São suas palavras:

“A memória coletiva e a sua forma científica, a história, aplicam-se a dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos. De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que ope­ram no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores. Estes materiais da memória podem apresentar-se sob duas for­mas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador” (op. cit., pp. 525-526).

Para se entender o fundamento da distinção proposta por Le Goff, devemos analisar a etimologia dos dois termos, monumento e documento, considerar que, no passado, os sentidos até certo ponto se confundiam. Documento provém do verbo latino docere, ensinar. Documento é, pois, sinônimo de ensinamento. O ensinamento pode ser escrito, pode ser oral e pode também ser simbólico, sem necessariamente se exprimir em linguagem escrita ou falada. O verdadeiro sentido da palavra documento, pois, vai muito além do significado estrito de documento escrito, como entendiam os historiadores positivistas do século XIX (que supervalorizavam o documento escrito e oficial) e como o linguajar popular corrente consagrou.

A proposta de Le Goff é, de certa forma, voltar ao sentido mais próximo do original dos termos e designar como monumento tudo quanto se herdou do passado, em sentido muito amplo e abrangente. E considerar como documento aquilo que o historiador escolhe para seu trabalho historiográfico, de acordo com sua criteriologia e sua respectiva escala de valores. Le Goff restringe, pois, o sentido da palavra documento. Um escrito do passado que tenha chegado até nós, ainda que perfeitamente preservado, é um monumento e não é, por si mesmo, um documento; somente será documento se for selecionado e utilizado por um historiador. Essa distinção tem algo de arbitrário e, portanto, algo de objetável, mas sem dúvida é muito clara, didática e funcional, adequando-se perfeitamente às necessidades terminológicas dos historiadores. Acabou por se impor.

Acrescento que documentos não são necessariamente materiais. Podem também ser imateriais, quando não se materializam, não se corporificam. Um exemplo, entre muitos outros: a existência comprovada, entre os índios brasileiros, de uma versão do mito do dilúvio universal, com Tamandaré (o “Noé” dos Tupi), é algo imaterial. Mas pode ser selecionado como documento, por um historiador que relacione esse mito com mitos análogos provenientes de outras partes do mundo, com relatos bíblicos, com fontes mesopotâmicas (como a saga de Gilgamesh) etc., com vistas a sustentar uma eventual tese sobre a remota origem dos índios brasileiros.

Por fim, nem sempre os documentos são voluntários. Há também documentos involuntários. Alguém pode querer deixar sua marca na história, perenizando uma lembrança. É o caso, por exemplo, de um homem primitivo que tenha pintado, na parede de uma caverna, uma cena de caça ou de luta. Esse mesmo homem pode, também, deixar involuntariamente sua marca na história, se abandonar restos de comida ou um vaso de barro quebrado. Esse “lixo” pré-histórico, analisado com cuidado, revela uma imensidade de coisas acerca da vida de nossos ancestrais. É tipicamente um documento involuntário.

Mesmo documentos escritos podem, contrario sensu, revelar involuntariamente o que não foi intencionalmente escrito. Certas omissões intencionais são muito reveladoras. Le Goff se estende, na obra citada, sobre os cuidados que o historiador deve tomar para não se limitar à letra do texto em si, exclusivamente, como propunham os positivistas, mas saber ir além do texto, inserindo-o num contexto, problematizando-o, interrogando o que nele não está dito e questionando o que nele está dito. Tudo isso constitui tarefa dos historiadores. É o que torna delicioso o nosso ofício.
 
Armando Alexandre dos Santos é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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